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Shirley Krenak: "As pessoas estão esquecendo o que são dentro do universo"

Danilo Rocha Lima, da Headline

A líder indígena Shirley Krenak é a protagonista de "A Mãe de Todas as Lutas", novo documentário de Susanna Lira, que mostra a luta das "Guerreiras Krenak" em defesa da terra e da dignidade dos povos originários no leste de Minas Gerais

14 de set. de 227 min de leitura
14 de set. de 227 min de leitura

Em um país acostumado a ser liderado por homens brancos, "A Mãe de todas as Terras", novo documentário da cineasta Susanna Lira, quebra paradigmas. O filme, que foi destaque na 18ª edição do festival "Brésil en Mouvements", realizado nessa semana, em Paris, coloca o olhar de duas mulheres indígenas no centro do debate sobre a preservação do meio-ambiente e o respeito à sabedoria ancestral da etnía Krenak.

O documentário liga a história da líder indígena Shirley Krenak e de Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre de Eldorado dos Carajás, quando 21 camponeses foram assassinados por policiais militares durante um protesto de trabalhadores rurais na cidade paraense.

Em Paris, onde participou da exibição do documentário durante o festival "Brasil em Movimentos" ("Brésil en Mouvements", no original francês), Shirley Krenak lembrou o significado do nome de seu povo (Kre=cabeça, Nak=terra) e alertou que a falta de vínculo entre os seres humanos e a terra tem dizimado sua etnia.

Hoje não mais de 600 pessoas vivem em um território de 4,9 mil hectares situado no leste de Minas Gerais. Há três séculos, o povo Krenak era formado por 40 mil pessoas e se espalhava por um território que se estendia pelo que hoje são os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Em entrevista a Headline, Shirley falou dos embates com empresas mineradoras, das consequências vividas pelos crimes ambientais de Brumadinho e Mariana, além da luta para colocar em pauta no STF o julgamento do Marco Temporal, parado desde setembro do ano passado.

Headline – Você diz que o povo Krenak, que vive na região do Rio Doce, território marcado pela tragédia de Brumadinho, pode cair no esquecimento. Por quê?

Shirley Krenak – Eu não costumo falar de tragédia. Eu costumo falar de crime. Quando a gente fala tragédia, parece que a gente tira a responsabilidade das empresas de mineração, que são totalmente responsáveis por esses crimes que aconteceram no leste de Minas Gerais. E o grande medo nosso é que tudo isso que está acontecendo no nosso país, aliado à falta de respeito com a questão ambiental, tenha consequências no nosso território Krenak.

Líder indígena Shirley Krenak apresenta na Europa "A Mãe de Todas as Lutas". Foto: Festival Brésil en Mouvements
Líder indígena Shirley Krenak apresenta na Europa "A Mãe de Todas as Lutas". Foto: Festival Brésil en Mouvements

Headline – Por que você afirma que ao lembrar da Amazônia, a gente acaba também matando seu povo e o local onde ele vive?  

Krenak – Nós temos muitos biomas no nosso país. E quando a gente fala em biomas fora do Brasil, as pessoas não entendem do que a gente está falando, porque na maioria das vezes eles dão um enfoque muito grande para a Amazônia e acabam esquecendo a potência que o Brasil tem por meio dos outros biomas. A Amazônia sozinha não consegue suportar toda a responsabilidade da questão de equilíbrio climático do Universo. 

É necessário que a gente dê visibilidade para todos os outros biomas. Nós precisamos recuperar o que foi destruído em todos os outros biomas, para que assim a Amazônia também consiga ter um suporte dos outros biomas e possa trazer esse equilíbrio climático no mundo inteiro. A Amazônia sozinha não é o pulmão do mundo. O pulmão do mundo são todos os biomas vivos e intactos.

Headline – Em “A Mãe de Todas as Lutas”, você está à frente da mobilização de um povo. Parece lugar comum falar de luta pela Terra e pelo meio ambiente num documentário?

Krenak – Nunca é um lugar comum, porque as pessoas, hoje em dia, têm uma mentalidade muito individualista e esqueceram totalmente de valorizar a sua própria essência. O poder de ter e obter as coisas tomou conta da sociedade não-indígena. E nós, povos indígenas, estamos com essa missão muito grande de proteger não só a terra, mas também toda essa essência que diz respeito às ações do ser humano. A gente precisa levar adiante para o mundo que todos nós, seres humanos, fazemos parte desse universo e todos nós somos responsáveis por manter viva a nossa terra sagrada. Precisamos manter viva a nossa floresta sagrada, para manter vivos os nossos rios sagrados. Essa responsabilidade é de todos nós. Mas, ultimamente, tudo o que nós, povos indígenas, falamos para o mundo parece que não está tendo valia. Parece que nós somos os errados em proteger os rios, o ambiente e o Universo. Isso é muito preocupante.

Headline – Com qual olhar você gostaria que as pessoas assistissem “ A Mãe de Todas as Lutas”?

Krenak – Eu gostaria que as pessoas pudessem ter um olhar de imersão na terra. Porque é isso que nós somos. Nós somos terra e o que corre dentro de nós é água. E a proposta de trazer o filme é maravilhosa, porque as pessoas estão esquecendo o que são. As pessoas estão esquecendo do que elas são dentro do Universo.

Quem somos nós em cima da Terra? Quem somos nós dentro dos rios? E quem somos nós diante do Universo? O filme vem com essa proposta, não só espiritual, mas também de lutar para manter viva toda uma tradição, uma cultura e uma terra sagrada.

Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre do Eldorado dos Carajás, e sua filha em assentamento dos sem-terra. Foto: Divulgação
Maria Zelzuíta, sobrevivente do massacre do Eldorado dos Carajás, e sua filha em assentamento dos sem-terra. Foto: divulgação

Headline – O julgamento do Marco Temporal está parado desde setembro do ano passado. O STF não prevê quando entrará em pauta. Existe a sensação de que essa demora em definir o Marco Temporal é um ganho de tempo para vocês?

Krenak – Eu espero que essa falsa sensação possa definitivamente acabar, porque isso é horrível para nós. Nós queremos ações concretas. Nós somos povos milenares, estamos aqui sobre esse território há muito tempo. Quem é esse governo fascista para dizer o nosso tempo sobre essa terra? Nós definimos o nosso tempo sobre essa terra. E nós esperamos que tudo o que diz respeito às ações de direito sobre demarcação territorial seja resolvido imediatamente. À medida que isso é empurrado para a frente e as soluções não acontecem, muitos corpos são estuprados e totalmente destruídos em nossos territórios. 

Nós precisamos das demarcações da nossa terra de forma imediata. E chega de falsas intenções. Nós queremos ações imediatas, concretas e verdadeiras. É isso que a gente espera do governo e da política, como povos indígenas originários das terras que hoje chamamos de Brasil. Somos nós os donos dessas terras.

Headline – Brumadinho e Mariana: qual é o cenário hoje?

Krenak – De destruição total. De falta de respeito. Muitas pessoas morreram, sabe? Muitas vidas foram arrancadas. E as pessoas esquecem o que aconteceu e ninguém foi punido. Essas empresas de mineração continuam avançando nos territórios, continuam destruindo. E ainda tem essa proposta do governo de liberar a mineração nas terras indígenas (PL 191/20).

O crime de Mariana matou mais de 700 quilômetros de rio. E, ainda hoje, o crime continua diante dos nossos olhos. E não está fácil lutar contra a mineração. O rio ficou totalmente poluído e cheio de química, lama tóxica. Mataram todas as espécies de vida que tínhamos no rio. E agora, as espécies que conseguiram sobreviver estão totalmente modificadas. Os peixes, agora, são cheios de tumores, com câncer na pele. As capivaras e outros animais que usufruem dessa água acabam ficando com a carne totalmente tóxica. Resultado: nossa forma de alimentação muda por completo. Então, agora muita alimentação vem da cidade. O peixe que a gente tinha o costume de comer assado? Não temos mais. A forma de ensinar nossas crianças às margens do rio? Nós não podemos mais fazer isso. Tocar com o dedo no rio? A gente não pode mais. 

Mesmo assim, eu deixo um recado para as pessoas. Enquanto existir um Krenak pisando sobre essa terra, vai ter resistência. Chega de sangue indígena sendo derramado nos territórios. Chega de propostas inviáveis, vindas de cima para baixo. 

Assista a trechos da entrevista com Shirley Krenak em vídeo

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